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terça-feira, 3 de abril de 2012

A CULTURA CAIPIRA

Por Antônio Cândido
Ensaista e Crítico literário emérito

O artigo foi extraído da Revista “Viola & Violeiros”, ano 1, número 1.
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É preciso pensar no caipira
como um homem que manteve
a herança portuguesa nas
suas antigas formas

chico-violeiro

A cultura caipira não é e nunca foi um reino separado, uma espécie de cultura primitiva independente, como a dos índios. Ela representa a adaptação do colonizador ao Brasil e portanto, veio na maior parte de fora, sendo sob diversos aspectos sobrevivência do modo de ser, pensar e agir do português antigo.

Quando um caipira diz “pregunta”, “a mó que”, “despois”, “vassuncê”, “tchão (chão)”, “dgente (gente)” não está estragando por ignorância a língua portuguesa; mas apenas conservando antigos modos de falar que se transformaram na mãe-pátria e aqui.

Até o famoso “erre retroflexo”, o “erre de Itur” ou “Tieter”, que se pensou devido a influência do índio, viu-se depois que pode ter vindo de certas regiões de Portugal. Como veio o desafio, a fogueira de São João, o compadrio, a dança de São Gonçalo, a Festa do Divino, a maioria das crendices, esconjuros, hábitos e concepções.

É preciso pensar no caipira como um homem que manteve a herança portuguesa nas suas formas antigas. Mas é preciso também pensar na transformação que ele sofreu aqui, fazendo do velho homem rural brasileiro o que ele é. “Tabareu”, “matuto”, “capiau”, “caipira”, o que mais haja, ele é produto e ao mesmo tempo agente muito ativo de um grande processo de diferenciação cultural própria. Na extensa gama dos tipos sertanejos brasileiros , poderia ser considerado “caipira” o rural tradicional do sudoeste e porções do oeste, fruto de uma adaptação da herança fortemente misturada com a indígena, às condições físicas e sociais do Novo-Mundo.

Nessa linha de formação social e cultural, o caipira se define como um homem rústico de evolução muito lenta, tendo por fórmula de equilíbrio a fusão intensa da cultura portuguêsa com a aborígene e conservando a fala, os usos, as técnicas, os cantos, as lendas que a cultura da cidade ia destruindo, alterando essencialmente ou caricaturando.

Em compensação, no quadro de sua cultura o caipira pode ser extraordinário. É capaz, por exemplo, de sentir e conhecer a fundo o mundo natural, usando-o com uma sabedoria e eficácia que nenhum de nós possui.

O nosso caipira, do ancestral português herdou com a língua e a religião a maioria dos costumes e crenças; do ancestral índio herdou a familiaridade com o mato, o faro na caça, a arte das ervas, o ritmo do bate-pé (que noutros lugares chama-se cateretê ou clique aqui), a caudalosa eloquência do cururu.

O cururu e a dança da Santa Cruz são dois exemplos muito bons de encontro de culturas. Parece terem sido elaborados sob influência dos jesuítas, que aproveitaram as danças indígenas e o gosto do Índio pelo discurso e o desafio para enxertar a doutrina cristã. Nada mais caipira que o cururu e a dança de Santa Cruz, que só existem em áreas de forte impregnação originária dos antigos piratininganos. E nada mais misturado de elementos portugueses e indígenas como tanta coisa que observamos nas catiras, nas histórias, nas técnicas do homem rural pobre e isolado de velha origem paulista. Na primeira metade do século, o caipira ainda era espoliado e miserável na maioria dos casos, porque com a passar do tempo e do progresso, quem permaneceu caipira foi a parte da velha população rural sujeita às formas mais drásticas de expropriação econômica, confinada, e quase compelida a ser o que fôra, quando a lei do mundo a levaria a querer uma vida mais aberta e farta, teoricamente possível.

Foi então que o caipira se tornou cada vez mais espetáculo, assunto de curiosidade e divertimento do homem da cidade, que, instalado na sua civilização e querendo ressaltar este “previlégio”, usava aquele irmão para provar como ele tinha prosperado.

A tarefa, portanto, é procurar o que há nele de autêntico. Autêntico, não tanto no sentido do impossível do originalmente puro, porque em arte tudo está mudando sempre; mas no sentido de buscar os produtos que representam o modo de ser e a técnica poético-musical do caipira como ele foi e como ainda é, não como querem que ele seja.

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